FALSIDADE
Uma amiga me pediu
para escrever sobre falsidade. A mente, traiçoeira, logo fugiu para idade.
Pensei nas criancinhas, dessas que não têm maldade, cujo sorriso é
um mapa do tesouro com o "X" marcando o lugar do coração.
Lembrei das palavras do Mestre: "Deixai vir a mim as
criancinhas, pois delas é o reino do céu." Um reino onde as
palavras significam o que são, sem dicionários para explicar o
amor.
Corri ao dicionário,
buscando o antônimo exato daquela sombra. Falsidade. Encontrei
"veracidade", "sinceridade". Termos secos,
técnicos, que não cheiram a nada. Fiquei decepcionado. Parecia que
o livro todo estava confuso, embaralhando definições de almas com
um dicionário interno desregulado.
O mundo precisava de
uma nova edição, revisada e ampliada. E eu, se pudesse,
reescreveria aquelas páginas gastas. Revisaria "veracidade"
a tinta vermelha e, na margem, com letra de criança, escreveria
LEALDADE.
Eis que a vida,
poetisa maior, ditou o verbete.
Num canto de
calçada, o mundo se reduzia. Um velhinho, mapa de rugas contando
histórias de solidão, deitado sobre um colchão de papelão. Ao
lado, sua carroça de papel, cujo motor é a força da mão e a
teimosia de existir. Em seu colo, um rabo abanava preso a um corpo
peludo, um lindo e alegre cachorrinho. Dois reis destronados, donos
de um império de afeto.
Então, o asfalto
rugiu. Um lindo carrão, blindado contra a realidade, parou. Dele
desceu um furacão de perfume francês, um cheiro tão forte que
quase apagou o cheiro do mundo. Uma senhora muito rica, envolta em
fios de ouro e tecidos que custam mais que todos os sonhos daquela
calçada.
O valor daquele
frasco, pensei, daria para comprar ração para o resto da vida do
cão. Uma vida inteira de lealdade, trocada por algumas gotas de
aroma que não conseguem mascarar o vazio.
Ela olhou, apontou.
Disse: "Que gracinha!" A palavra, oca, ecoou contra o muro
e se esvaiu no vento, um elogio não ao conjunto, mas ao acessório
fofo. Ela passou. Levou o perfume. Levou o elogio vazio. Deixou a
falsidade pairando no ar, como um gás pesado e doce.
E então, o verbete
se completou.
O cachorrinho não
leu dicionários. Não entendeu de perfumes ou carros. Ele levantou o
focinho, observou a fina rainha que partiu, e então… enterrou sua
cabeça no colo surrado do velhinho. Em um ato singelo, profundo e
definitivo, o amou.
Ali, naquela
calçada, estava a definição viva. O antônimo de falsidade não é
uma palavra. É um gesto. É a lealdade que aquece o colo mais frio,
que escolhe o afeto sobre o conforto, que abana o rabo mesmo quando o
mundo todo passa ao largo, sem ver os reis que ali habitam.
O dicionário estava
mesmo errado. E o cachorro, sábio professor de uma única cátedra,
o reescreveu com um simples, e eterno, ato de amor.
Paulo Franco.